Rezem pela minha alma pecadora
António Lobo Antunes
"Tenho bem conta da precariedade disto. Qualquer dia a vida diz-me adeus e vai-se, e eu sem tempo sequer para despedidas
— Adeus vida
eu só olhos e narinas abertas na almofada. Vi o meu pai morto e a injustiça da sua imobilidade revolta-me. Vi pessoas de que gostava muito mortas e revoltei-me também. Quer dizer, nem uma palavra me saiu da boca e eu furioso. Parentes sérios, cumprimentos, abraços. Saía da capela que cheirava horrivelmente a flores, tudo igual cá fora e eu mais furioso ainda. Sentava-me num degrau do adro, ficava para ali. O relógio da igreja ia batendo horas. Não compreendia, não compreendo e o facto de não compreender desesperava-me. Não queria compreender só com a cabeça, queria compreender com os sentidos e nem a cabeça nem os sentidos me ajudavam. Um sentimento de solidão muito grande, de desamparo. E sempre a mesma pergunta
— Porquê?
e um vazio a seguir à pergunta. Meta-se depressa debaixo da terra pai ou seja, já que não se mexe, que o metam depressa debaixo da terra. E depois os objectos dos mortos que a pouco e pouco desaparecem, coisas em que mexiam todos os dias, que faziam parte deles, que usavam, e a sensação que as coisas mortas igualmente. Pegava-lhes e não se animavam. Pareciam moles. Casas cheias de ausências. Um prato que se sumia da mesa, uma cadeira a prolongar a forma de um corpo que não existia. Ficam retratos: que me interessam os retratos. O nome. E depois os retratos e o nome desaparecem igualmente. Ficarão os meus livros. Meu Deus serei apenas livros um dia, lombadas numa estante? E estas mãos? Estes olhos? Este corpo? Na última entrevista de um escritor inglês, ao perguntarem-lhe o que desejava da posteridade respondeu
— Que rezem pela minha alma pecadora.
Espero que façam o mesmo por mim porque andei cheiinho de pecados até à borda. Pela janela o vento nos arbustos, sol, que coisa. Rezem pela minha alma pecadora. E o vento que não pára de remexer, agitar. Que pretende ele? Dá ideia de querer segredar não sei quê, explicar-me e não lhe alcanço a linguagem. As casas também, às vezes. E a noite. À noite é pior: cochichos, cicios, avisos. Não sou uma criatura triste, sou uma criatura intrigada. Leonardo da Vinci costumava assinar Leonardo, iletrado. Lá vai, entre os arbustos, uma cadela no cio com a sua dúzia de cachorros ansiosos atrás. Esse ar preocupado dos cães. Às vezes lá estão eles mortos na berma das auto-estradas, ensanguentados. Se passar por ali no dia seguinte desapareceram: quem os levou? Um bêbado de braços abertos no meio das pistas, a desafiar os automóveis, de gabardina e cachecol no pino do verão. A gabardina sempre a mudar de forma derivado aos gestos. O horror dos doentes no hospital de quando eu era médico, O meu pai morreu sozinho num deles, a meio da noite. Que léria é esta? Alguém nasceu ou morreu acompanhado, porventura? Alguém viveu acompanhado a sério, não me refiro a gente por perto, refiro-me a acompanhado, uma proximidade sem palavras, uma fusão. Toquem-me no ombro, há alturas em que sinto necessidade que me toquem no ombro. Depois, logo a seguir, podem ir-se embora. Homens a despejarem bilhas de gás de uma camioneta. O senhor do café que desenrola o toldo à manivela. Bandeiras nos parapeitos derivado ao futebol. Uma ocasião fui buscar uma mulher que queria suicidar-se ao telhado de um prédio. Foi um bambúrrio não temos caído os dois dali abaixo. Os telhados dos prédios
(e era um prédio novo)
são oblíquos e escorregam.
— Esteja calma
insistia eu (que palermice)
— Esteja calma
e ela inclinada cá para baixo a chorar. Carros da polícia a acenderem e a apagarem as luzes do tejadilho, a cara da porteira numa espécie de postigo
— Eu não aguento
e claro que aguentou conforme a mulher aguentou, conforme eu aguentei. Lá viemos pela escada com ela sempre a chorar, um dos pés calçado, o outro descalço, e por cima da roupa essas batas que se põem para limpar o pó. Tinha uma espécie de vassoura que ficou lá em cima um bocado depenada. As luzes do tejadilho dos carros da polícia apagaram-se. Isto no Outono sob um céu de desastre. Não sei se a mulher tinha marido, filhos. Não tornei a vê-la e nem da cor do seu cabelo me recordo. Recordo-me das unhas comidas. De uma pulseirinha de oiro. Mais nada. E eu, que sofro de vertigens, para ali feito herói
— Esteja calma
quando não há heroísmo algum mim. Sou egoísta. Não valho grande coisa. É como na guerra: têm-se comportamentos esquisitos por um motivo que me escapa. De generosidade, de coragem. Claro que não estou necessariamente a falar no meu caso. Andei naquilo. É tudo. E mesmo que não aceite admiti-lo marcou-me para sempre: não me saem da ideia os nomes dos mortos. Aí está: os mortos nomes e coisas. O retrato de um deles no caixão, a perseguir-me até hoje. Não admira: quase tudo me persegue até hoje, uma velhota que lavava degraus num prédio, a gemer. Não andava na escola ainda e o raio da velhota não pára de gemer. Há cinquenta anos que geme no interior de mim. Vou acabar esta prosa. Como? Se alguém me desse uma ajudinha, uma ideia. O vento nos arbustos? Não. A cadela com cio? Também não. A mulher? Nem sonhar. Acabar apenas, levantar-me da mesa com uma frase a meio. O meu pai? Ainda menos. Talvez a frase do escritor inglês: rezem pela minha alma pecadora."
VISÃO - 28 DE DEZEMBRO DE 2006
António Lobo Antunes
"Tenho bem conta da precariedade disto. Qualquer dia a vida diz-me adeus e vai-se, e eu sem tempo sequer para despedidas
— Adeus vida
eu só olhos e narinas abertas na almofada. Vi o meu pai morto e a injustiça da sua imobilidade revolta-me. Vi pessoas de que gostava muito mortas e revoltei-me também. Quer dizer, nem uma palavra me saiu da boca e eu furioso. Parentes sérios, cumprimentos, abraços. Saía da capela que cheirava horrivelmente a flores, tudo igual cá fora e eu mais furioso ainda. Sentava-me num degrau do adro, ficava para ali. O relógio da igreja ia batendo horas. Não compreendia, não compreendo e o facto de não compreender desesperava-me. Não queria compreender só com a cabeça, queria compreender com os sentidos e nem a cabeça nem os sentidos me ajudavam. Um sentimento de solidão muito grande, de desamparo. E sempre a mesma pergunta
— Porquê?
e um vazio a seguir à pergunta. Meta-se depressa debaixo da terra pai ou seja, já que não se mexe, que o metam depressa debaixo da terra. E depois os objectos dos mortos que a pouco e pouco desaparecem, coisas em que mexiam todos os dias, que faziam parte deles, que usavam, e a sensação que as coisas mortas igualmente. Pegava-lhes e não se animavam. Pareciam moles. Casas cheias de ausências. Um prato que se sumia da mesa, uma cadeira a prolongar a forma de um corpo que não existia. Ficam retratos: que me interessam os retratos. O nome. E depois os retratos e o nome desaparecem igualmente. Ficarão os meus livros. Meu Deus serei apenas livros um dia, lombadas numa estante? E estas mãos? Estes olhos? Este corpo? Na última entrevista de um escritor inglês, ao perguntarem-lhe o que desejava da posteridade respondeu
— Que rezem pela minha alma pecadora.
Espero que façam o mesmo por mim porque andei cheiinho de pecados até à borda. Pela janela o vento nos arbustos, sol, que coisa. Rezem pela minha alma pecadora. E o vento que não pára de remexer, agitar. Que pretende ele? Dá ideia de querer segredar não sei quê, explicar-me e não lhe alcanço a linguagem. As casas também, às vezes. E a noite. À noite é pior: cochichos, cicios, avisos. Não sou uma criatura triste, sou uma criatura intrigada. Leonardo da Vinci costumava assinar Leonardo, iletrado. Lá vai, entre os arbustos, uma cadela no cio com a sua dúzia de cachorros ansiosos atrás. Esse ar preocupado dos cães. Às vezes lá estão eles mortos na berma das auto-estradas, ensanguentados. Se passar por ali no dia seguinte desapareceram: quem os levou? Um bêbado de braços abertos no meio das pistas, a desafiar os automóveis, de gabardina e cachecol no pino do verão. A gabardina sempre a mudar de forma derivado aos gestos. O horror dos doentes no hospital de quando eu era médico, O meu pai morreu sozinho num deles, a meio da noite. Que léria é esta? Alguém nasceu ou morreu acompanhado, porventura? Alguém viveu acompanhado a sério, não me refiro a gente por perto, refiro-me a acompanhado, uma proximidade sem palavras, uma fusão. Toquem-me no ombro, há alturas em que sinto necessidade que me toquem no ombro. Depois, logo a seguir, podem ir-se embora. Homens a despejarem bilhas de gás de uma camioneta. O senhor do café que desenrola o toldo à manivela. Bandeiras nos parapeitos derivado ao futebol. Uma ocasião fui buscar uma mulher que queria suicidar-se ao telhado de um prédio. Foi um bambúrrio não temos caído os dois dali abaixo. Os telhados dos prédios
(e era um prédio novo)
são oblíquos e escorregam.
— Esteja calma
insistia eu (que palermice)
— Esteja calma
e ela inclinada cá para baixo a chorar. Carros da polícia a acenderem e a apagarem as luzes do tejadilho, a cara da porteira numa espécie de postigo
— Eu não aguento
e claro que aguentou conforme a mulher aguentou, conforme eu aguentei. Lá viemos pela escada com ela sempre a chorar, um dos pés calçado, o outro descalço, e por cima da roupa essas batas que se põem para limpar o pó. Tinha uma espécie de vassoura que ficou lá em cima um bocado depenada. As luzes do tejadilho dos carros da polícia apagaram-se. Isto no Outono sob um céu de desastre. Não sei se a mulher tinha marido, filhos. Não tornei a vê-la e nem da cor do seu cabelo me recordo. Recordo-me das unhas comidas. De uma pulseirinha de oiro. Mais nada. E eu, que sofro de vertigens, para ali feito herói
— Esteja calma
quando não há heroísmo algum mim. Sou egoísta. Não valho grande coisa. É como na guerra: têm-se comportamentos esquisitos por um motivo que me escapa. De generosidade, de coragem. Claro que não estou necessariamente a falar no meu caso. Andei naquilo. É tudo. E mesmo que não aceite admiti-lo marcou-me para sempre: não me saem da ideia os nomes dos mortos. Aí está: os mortos nomes e coisas. O retrato de um deles no caixão, a perseguir-me até hoje. Não admira: quase tudo me persegue até hoje, uma velhota que lavava degraus num prédio, a gemer. Não andava na escola ainda e o raio da velhota não pára de gemer. Há cinquenta anos que geme no interior de mim. Vou acabar esta prosa. Como? Se alguém me desse uma ajudinha, uma ideia. O vento nos arbustos? Não. A cadela com cio? Também não. A mulher? Nem sonhar. Acabar apenas, levantar-me da mesa com uma frase a meio. O meu pai? Ainda menos. Talvez a frase do escritor inglês: rezem pela minha alma pecadora."
VISÃO - 28 DE DEZEMBRO DE 2006
6 comentários:
Não sou apreciador desse senhor...mas gostei muito...
Eu ao contrário do nosso querido amigo Rui, sou grande apreciadora desse Sr.e da forma como escreve... adorei, até porque é uma das coisas que me intriga é mesmo o que restará de nós depois desta vida... teremos que esperar para ver, certo?
eu cá não me importo nada de continuar à espera... não tenho curiosidade nenhuma em saber.....
Pois é! Há sempre uma forma estranha em como cada um de nós se relaciona com a sua finitude. Não adianta..
Podemos ler artigos como este (SUBLIME!) ou outros como os recentemente escritos pelo Moita Flores na sequência da sua tese de doutoramento sobre a morte e cemitérios,...que a nossa reacção é sempre a mesma: um friozinho no estômago!
Resta-nos só mesmo aguardar(..o tempo que fôr preciso...não temos pressa, entenda-se!)
Beijinho da tia Guida
É verdade... não temos pressa... que o brilho de todos os dias nos guie e nos ajude a olhar para todos aqueles que já partiram como uma inspiração, com um sorriso verdadeiro, mas não deixando nunca que este olhar se torne melancólico ou triste!
Também nós um dia, seremos inspiração para outros... vamos então procurar fazer com que os nossos dias sejam mais coloridos... é essa cor que os vai inspirar!!
aiiiiii rita!
está lindo!!
Obrigada!
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